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Inês Moura Pinto

Opinião: Era uma vez sexo sem consentimento

Quando eu era pequena, a única coisa que me deixava quieta, e consequentemente acalmava a minha mãe, era o poder hipnotizante da televisão. Nomeadamente, das cassetes VHS de todos os filmes da Disney, que eu consumia repetitivamente como se cada vez fosse a primeira. Nessa altura, antes das questões sociais serem abertamente incorporadas nos filmes de animação, a mensagem passada a pequenas crianças impressionáveis não era a mais adequada. Em primeiro lugar, durante a minha infância dominavam os filmes – os clássicos – em que a pobre donzela em apuros era salva pelo príncipe encantado, e os seus problemas resolviam-se magicamente durante os actos musicais. Como se não bastasse, a princesa raramente tinha controlo sob o que lhe acontecia.


Há uns meses atrás deparei-me com um anúncio da página do Facebook da Amnistia Internacional Portugal, que mostrava uma reencenação animada da parte em que o príncipe acorda a Bela Adormecida com um beijo. Nesta versão, o príncipe não só a beija, como se começa a aproveitar dela e é impedido por uma coruja e um sapo. Como tentativa de se justificar, o príncipe alega que está tudo bem porque ele é um príncipe e ela é uma princesa, e curtiram na festa e estão só a continuar onde ficaram. Apesar de ela estar inconsciente e ele não lhe ter perguntado se ela queria. No fim do vídeo aparece um letreiro medieval com a mensagem - “No consent, no fairy tale” – que, infelizmente, não é levada suficientemente a sério na nossa sociedade.


Desde quando é que é aceitável a Aurora ou a Branca de Neve – que estavam convenientemente inconscientes – serem beijadas, em nome do amor verdadeiro, por um estranho, sem qualquer consentimento? Isto não só contribui para o conceito de “esperar que um homem nos salve” como é uma clara violação da integridade pessoal da princesa e nós deixamos passar por se tratar de um conto de fadas. Se até num conto de fadas – onde supostamente tudo acaba com um final feliz – este tipo de situações acontecem e são banalizadas, então o que é que podemos esperar para a realidade?


A verdade é que vivemos numa realidade em que agressores sexuais saem em liberdade com pena suspensa – como aconteceu no polémico caso numa discoteca do Porto, onde uma mulher foi violada enquanto se encontrava inconsciente e os dois arguidos não foram devidamente responsabilizados pelas suas acções. A indumentária da vítima, o seu comportamento em relação aos agressores ou o facto de estar sobre o efeito de substâncias que toldam o seu discernimento não devem justificar abusos sexuais. No seguimento destas injustiças, o PAN propôs, esta semana, a alteração da lei de maneira ao sexo sem consentimento ser considerado violação e um crime público.


A Declaração Universal dos Direitos Humanos fez na segunda feira 70 anos, e já se progrediu muito desde então. Contudo, não podemos focar-nos no que já alcançámos, mas sim naquilo que falta corrigir e este é um desses casos. Quando descobri que a minha mãe tinha mandado as minhas cassetes fora fiquei bastante revoltada com a fácil descartabilidade da minha infância. Para haver progresso tem de se deixar algumas coisas para trás, talvez devêssemos fazer o mesmo com estes conceitos antiquados e misóginos.

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