O sistema de adopção em Portugal não difere muito de um contentor que ninguém planeia encontrar. Uma criança foi salva, mas muitas outras são postas lá dentro todos os dias.
O caso do bebé deixado num contentor do lixo em Lisboa voltou as atenções para um problema negligenciado pelo país: a negligência de pais para filhos. Nos casos em que a família biológica assume ou se comprova que não tem condições, sejam elas materiais ou emocionais, para criar uma criança, e havendo um sistema nacional de adopção preparado para as receber, não haverá uma linha muito entrançada que ligue uma situação à outra.
Quem lê notícias à volta deste tema deve pensar para si que é uma pena não haver portugueses com coração suficiente para ir buscar um miúdo a uma instituição. Há tantos lá e ninguém os quer adoptar. Coitados. Esta ideia da adopção em Portugal não podia ser mais errada mas também não podia ser mais real.
Há quem pense isso e fique por aí, e também há quem pense isso e vá ver os números divulgados pela Segurança Social e intensifique o seu nó na cabeça quando vê que, de forma geral, há um rácio de uma criança para adopção para quatro candidatos a pais. Então por que ouvimos dizer que os orfanatos estão cheios e não há miúdos a ser adotados? A ideia da adopção em Portugal faz ainda menos sentido.
Vamos perdoar os termos mercantis pela pertinência do paralelismo: o problema com a adopção em Portugal não é a falta de procura face à larga oferta das instituições. O problema com a adopção em Portugal é o sistema: é que, das cerca de oito mil crianças institucionalizadas, apenas um décimo está “apta” para adopção. Porquê? Volta-se a perguntar. A jornalista do Observador e mãe adoptiva Ana Kotowicz explicita uma razão: “no nosso imaginário coletivo, as crianças à espera de serem adotadas são órfãs”. Das tais oito mil crianças, as que não têm pais nem a cem chegam.
A grande massa de crianças institucionalizadas não está com as famílias biológicas porque o Estado decide que tal é insustentável para o equilíbrio emocional e cognitivo da criança. Mas a grande massa de crianças institucionalizadas não pode ser adoptada: se a razão do Estado é forte o suficiente para as retirar da família biológica, negligente e distante, não o é para as entregar a uma família nova, apta e motivada para as receber, depois de nove meses de burocracia, análise financeira e interrogatório psicológico – nove meses certamente mais trabalhosos que uma gravidez.
As crianças vão crescendo nas instituições, à espera das visitas dos pais biológicos que nunca recebem, até fazerem 18 anos e terem que abandonar o único, embora fraco, apoio que receberam toda a vida; são atiradas para uma vida a começar do zero, obrigados a construir os alicerces de uma estrutura que não deviam ser eles a construir.
Assim se perpetua um purgatório infantil de constante instabilidade, quando há uma nova oportunidade para as crianças, e assim se cansam pais (são-no verdadeiramente, se o filho por que esperam não vem?), ansiosos por um processo exaustivo que morre na espera infinita por uma chamada da Segurança Social. O sistema de adopção em Portugal não difere muito de um contentor que ninguém planeia encontrar. Uma criança foi salva, mas muitas outras são postas lá dentro todos os dias.
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