top of page
Foto do escritorPrisma

Entrevista: Fátima Vieira:“deixei de ver o outro como o outro, foi isso que a utopia fez por mim”

GRANDE ENTREVISTA


Desde que assumiu a pasta da Cultura na Universidade do Porto, Fátima Vieira ajudou a abrir a Reitoria à comunidade e as asas à criatividade - palavras chave no seu percurso pelos estudos da utopia. Fátima traça a sua carreira como encara a utopia, um passo de cada vez, sabendo que haverá sempre mais passos para a frente. “Para que serve a utopia então? Para me fazer andar”.

Fátima Vieira é vice-reitora da Universidade do Porto | Inês Moura Pinto

De aluna a professora, de tradutora a vice-reitora, Fátima Vieira tem um percurso de carreira, no mínimo, único. Ser investigadora na área dos estudos utópicos é o que mais curiosidade e confusão gera. Em entrevista ao Prisma, fala a utopia como guia pessoal mas também como exemplo universal.


Em que ponto da sua vida surge a tendência para as ciências sociais e humanísticas?


Eu acho que nunca tive dúvidas do que queria fazer. Seria sempre na área das ciências humanas - não necessariamente Literatura - mas nunca fui uma pessoa com perfil de ciências. Houve uma altura em que pensei seguir Relações Internacionais, mas o curso só existia na Universidade do Minho, e só quando cheguei lá percebi que deveria ter feito matemática no décimo segundo ano, o que era impossível, pois tinha abandonado no nono. Depois pensei em Direito, mas como entretanto tinha acabado o décimo segundo e não sabia o que havia de fazer, não ficaria um ano a não fazer nada. Então inscrevi-me na Faculdade de Letras a pensar que, durante o ano, me preparava para os exames para poder entrar para Direito. Mas, logo na primeira semana, entrei no anfiteatro da Faculdade de Letras (que agora é a de Ciências) e comecei a ouvir falar de literatura, que sempre foi algo que me interessou muitíssimo.


Não tinha pensado nisso antes apenas porque, como os adolescentes pensam, eu não queria ser “’stora” e achava que, se fosse para Letras e tirasse o curso de Línguas e Literaturas Modernas, ia ser 'stora para toda a vida. Mas entrei naquela aula de Introdução a Estudos Literários e percebi que era ali que queria ficar. Lembro-me de ter chegado a casa e de ter dito aos meus pais: "sabem aquele plano de ir para Direito? Afinal é para esquecer".


É professora na FLUP, mas já ensinou em várias universidades europeias e também no Brasil e no Vietname. Como foi a experiência de ter ensinado em sítios tão diferentes?


Eu adoro viajar e adoro sobretudo aprender. Nunca perdi nenhuma oportunidade para concorrer aos programas de mobilidade e aproveitei sempre a pausa letiva em que os estudantes estão em exames para fazer as deslocações. Tive experiências muito interessantes: nas mais curtas, de uma semana, nunca dá muito para conhecer os hábitos dos locais, mas fiz sempre questão de alugar quartos em casas de famílias, em vez de ficar num hotel. No Vietname, fiquei na casa de uma família que não falava inglês, o que gerou bastantes desentendimentos engraçados, mas com o tempo passámos a entender-nos e ficámos amigos. No Brasil, vi os estudantes a ter uma cadeira de treino para entrevistas de emprego, estavam preparados para responder de uma forma muito proficiente sobre toda a sua própria formação, e achei isso muito interessante.


Eu acho que sempre fui utópica, mas hoje sou perfeitamente utópica, no sentido em que acredito que é possível mudar a forma como as pessoas pensam e acho que a cultura, a informação, o conhecimento têm um papel importantíssimo

De vários pontos do mundo, regressamos à Reitoria. Como foi para si, também como mulher num quadro eleitoral maioritariamente masculino, colocar o retrato da Leopoldina Ferreira Paulo no Salão Nobre?


O retrato aparece na sequência de uma sessão que tivemos aqui, na Reitoria. Estávamos na parte dos cadeirais no Salão Nobre e quem o conhece sabe que temos lá 49 retratos - todos masculinos. Eu pensava que os retratos eram de diretores da antiga Faculdade de Ciências, que era aqui na Reitoria, e achava que não podia mudar a história. Cheguei até a pensar “não posso agora inventar que quero o retrato de uma mulher, se não tinha havido uma diretora no princípio do século XX, porque é aí que terminam os retratos”.


Nessa sessão, havia meninas que ajudam as pessoas a sentarem-se nos seus lugares, vestidas como hospedeiras da TAP. Eu olhei para elas e comentei com um colega: “então, não bastava ter aqui tantos retratos masculinos, eu não posso mudar a história e agora, ainda por cima, tenho estas meninas aqui vestidas assim”. Quem eu queria eram rapazes e raparigas, com calças de ganga e uma t-shirt da Universidade do Porto; achei que aquele tipo de vestuário não representava a UP. Então o meu colega, na altura, respondeu-me “mas estes retratos não são todos de diretores, também há aqui um fundador e muitos professores”, e eu disse “não pode ser”.


Então, a primeira coisa que fui ver foi se seria possível pormos lá o retrato de uma mulher. Com um bocadinho de investigação, e falando com as pessoas sobre a história da casa, chegamos à conclusão de que a pessoa mais indicada seria a Leopoldina Ferreira Paulo, a primeira mulher doutorada, em 1944, pela Universidade do Porto. Realmente, a colocação do seu retrato no Salão Nobre faz toda a diferença. Nós construímos narrativas sobre a nossa vida e precisamos de lugares de memória. Portanto, entrando no Salão Nobre, sou capaz de contar a história e a fundação da Universidade do Porto, só que, como só tinha lugares de memória masculinos, parecia que as mulheres estavam ausentes e que nunca tinham tido um papel importante. De facto, houve mulheres que muito presentes.


Agora quando entramos lá, a primeira coisa que as pessoas perguntam é “mas quem é aquela mulher?”, porque é única. Agora há este lugar de memória que faz com que as mulheres deixem de ser invisíveis, o que me parece tão importante.


Leopoldina Ferreira Paulo foi a primeira doutorada da UP | Inês Moura Pinto

Por falar no retrato de uma mulher e por falar também em utopia, considera que o alcance da igualdade de género pode ser em si uma utopia?


As utopias, na forma como nós, na área de estudos sobre utopias, as trabalhamos, não são aqueles sonhos impossíveis, são algo que nos faz avançar. A igualdade de género não é, de forma alguma, uma realidade, mas é um processo.


Fernando Birri terá explicado a utopia de forma perfeita: é algo que eu coloco no meu horizonte, eu dou dez passos e a utopia afasta-se dez passos; dou mais dez passos e a utopia afasta-se mais dez passos. Para que é que serve a utopia então? Para me fazer andar, caminhar.





Portanto, é importante que mantenhamos sempre no horizonte essa utopia que nos faz caminhar e é também importante que continuemos com estes lugares de memória, ou então com obras. A grande preocupação de Margaret Atwood, quando escreve o The Handmaid’s Tale, é exatamente lembrar às mulheres que por nunca terem sido preteridas antes, por sorte, não podem pensar que toda a gente vive nessa situação e não podem pensar que é uma batalha ganha. Estava a lembrar-me também de um artigo que li hoje, onde um homem dizia “eu não digo «eu ajudo a minha mulher na cozinha»”, porque quando se diz “eu ajudo alguém na cozinha” significa que “é o trabalho dela e eu até sou ótimo porque vou ajudá-la”, mas não, o trabalho na cozinha é partilhável, obviamente.



A sua área de estudos é, portanto, o Pensamento Utópico. Como é que surgiu esse interesse? A partir de que momento é que se começou a identificar?


Começou como tema de estudo e também de ensino. A primeira cadeira que me foi confiada foi Cultura Inglesa e era incontornável o nome de Thomas More. É ele que escreve Utopia, em 1516.


Portanto, comecei por estudar para ensinar e depois acabou por se tornar o tema da minha tese de doutoramento. Eu acho que sempre fui utópica, mas hoje sou perfeitamente utópica, no sentido em que acredito que é possível mudar a forma como as pessoas pensam e acho que a cultura, a informação, o conhecimento têm um papel importantíssimo.


Aliás, nós hoje, na área de estudos de Utopia, trabalhamos exatamente com o conceito de utopias realistas, o que parece quase um contrassenso porque, normalmente, as pessoas pensam que utopia é algo que não é realizável.



A maioria dos projetos que tem, como ALIMENTOPIA e PANUTOPIA 2100, acabam por ser de inteligência coletiva e também são direcionados, principalmente, aos jovens. Pensa que, sendo os jovens o futuro, há liberdade, no presente, para eles imaginarem as alternativas à sociedade em que se inserem? Há liberdade para imaginarem uma utopia?


Lembro-me de uma turma do nono ano numa escola aqui no Porto estar muito aborrecida porque todos os avanços tecnológicos que me sugeriam eu dizia-lhes que já não era novidade, e dizia-lhes que tinham que inventar outra coisa. A certa altura, lembrei-me e disse-lhes: "no ano 2100, vai haver um jubulu" e eles perguntaram "o que é isso?" e eu disse: "eu não sei, mas agora a partir desta palavra vocês vão inventar". Foi aí que percebi que para inventarem alguma coisa, ela tinha que corresponder a um conceito, uma palavra que despoletasse essa criatividade.


Estes estudantes são muito diferentes dos outros, porque são habituados desde pequenos a pensar utopicamente. Como é que nós pensamos utopicamente? Pensamos com ambição. Em vez de perguntar: "como é que é possível que o futuro seja?", perguntamos antes "como é que eu quero que o futuro seja?". Os estudantes de Valongo ganharam um concurso que organizámos sobre o problema do desperdício alimentar, com a instalação de um frigorífico comunitário onde as pessoas poderiam colocar os alimentos de casa que estivessem dentro da validade, mas que não comessem. Para mim, é mesmo uma prova de que é possível os jovens mudarem o futuro e claro que é nos jovens que temos de apostar.


Fátima Vieira é responsável pela tradução de várias obras de Shakespeare para português | Inês Moura Pinto

O grande problema é que nós olhamos para o inimigo como o outro e não percebemos que é exatamente quando nós temos o outro que somos capazes de evoluir

De que forma a cultura é um passo para o progresso?


Nós definimos a cultura como a forma de vermos o mundo; se vemos uma pessoa que para nós tem uma cultura diferente, é porque ela olha para o mundo de forma diferente. A questão é perguntarmo-nos “será que nós podemos fazer com que as pessoas olhem para o mundo de forma diferente?”. Aquilo que temos tentado provar é que sim, é possível, dando-lhes conhecimento. Há um conjunto de pessoas que acham que a ciência é uma questão de fé, e isto só se combate com conhecimento e a cultura é um primeiro passo nesse sentido.


Por outro lado, a cultura é um primeiro passo se estivermos a pensar na multiculturalidade. Um dos desafios que temos hoje em dia é, sem dúvida, o das migrações. Só podemos acolher os refugiados quando deixarmos de os ver como o inimigo. O grande problema é que nós olhamos para o inimigo como o outro e não percebemos que é exatamente quando nós temos o outro que somos capazes de evoluir. A própria natureza dá-nos uma lição sobre isso, por exemplo, as plantas hermafroditas são alimentadas sempre por plantas de outra espécie, para poder haver evolução.

Conviver apenas com pessoas iguais a mim é um dos problemas do Facebook: eu sou bastante ativa lá e ultimamente tenho tentado fazer um exercício de aceitar pedidos de amizade de pessoas com opiniões diferentes da minha. Porque cheguei à conclusão de que, se eu não for exposta àquilo que é diferente de mim, eu vou ficar igual a mim mesma.


A tradução é também uma das suas áreas de interesse e, neste momento, está a traduzir Júlio César. Como surgiu esta veia da tradução?


Não foi bem veia, começa por um interesse, mas tem a ver com as unidades curriculares que lecionei. A tradução literária, para mim, é uma autêntica paixão. É sobretudo perceber melhor, e é isso que eu quero. Eu achava anteriormente que conhecia muito bem A Tempestade, de Shakespeare, mas só a conheci bem quando, de repente, me vi com cinco edições inglesas diferentes, com explicações distintas para os versos. Se os próprios ingleses não são capazes de perceber isto, como é que eu vou fazer? O que eu acho interessante no trabalho de tradução é a cocriação. Cada tradutor traduz de forma diferente, e eu sinto-me também criadora. Gosto particularmente do desafio da tradução, e depois Shakespeare é um desafio imaginativo, não é apenas de compreensão, e é também um desafio do nosso vocabulário - como é que nós vamos traduzir Shakespeare para o século XXI?


O facto de eu caminhar dez passos e a utopia afastar-se mais dez passos permite-me parar e dá-me tempo para refletir sobre se é realmente aquele caminho que quero seguir. Acho que deve ser muito penoso viver numa sociedade onde todos os nosso desejos se encontram realizados

Fátima Vieira é investigadora na área dos estudos utópicos | Inês Moura Pinto

Pegando no conceito da utopia como aquele objetivo que se encontra a dez passos mas depois, quando damos dez passos, ele já não está lá, será que isso não traz desânimo? Eu acho que não porque é fantástico nós podermos continuar a caminhar. Antigamente falava-se da utopia enquanto sociedade perfeita, mas deve ser horrível viver numa sociedade assim, porque já não podemos criar nada. O facto de eu caminhar dez passos e a utopia afastar-se mais dez passos permite-me parar e dá-me tempo para refletir sobre se é realmente aquele caminho que quero seguir. Acho que deve ser muito penoso viver numa sociedade onde todos os nosso desejos se encontram realizados. Claro que se estamos a falar de ter comida para todos, ter uma casa onde se possa viver, trabalho para todos, claro que isso era maravilhoso! Mas de certeza que depois ainda há espaço para muitas outras dinâmicas sociais e isso é que é importante, continuarmos a caminhar.

Aliás, deixei de ver “o outro” como “o outro”. Sou uma pessoa muito mais aberta. Acho que foi isso que a utopia fez por mim

Como é que essa meta no horizonte mudou a sua forma de ver a vida? Eu sou uma pessoa completamente diferente. Hoje continuo a seguir as regras todas, mas acho que já o faço de uma forma diferente. Chego ao ponto de muitas vezes os meus filhos me dizerem “tu não és a minha mãe, tu és um ET que levou a minha mãe! [risos]”. Acho que sou uma pessoa mais aberta e muito mais curiosa. Enquanto professora, por exemplo, mais do que ensinar, tenho aprendido muito com os meus estudantes. Estou muito grata por todas as vezes que me trazem algo de novo para ler, quando me apresentam um autor que não conhecia e teses de mestrado sobre temas interessantíssimos que nunca me passariam pela cabeça… Acho que tem, sobretudo, a ver com esta curiosidade e com uma capacidade que tenho muito maior de acolher o outro. Aliás, deixei de ver “o outro” como “o outro”. Sou uma pessoa muito mais aberta. Acho que foi isso que a utopia fez por mim.

Como será para si o mundo em 2100, daqui a 80 anos?


Aquilo que eu desejava que fosse, e isto é uma utopia realista, é uma sociedade de iguais. Sei que vai ser também uma sociedade fortemente urbana, e isso vê-se já pelas estatísticas que nos dizem que, em 2050, 80% da população vai viver nas cidades. Nos grandes esquemas das cidades futuristas, temos grandes prédios que correspondem já a uma cidade, mas o que eu quero é que esses grandes prédios tenham grandes jardins. Espero também que o mundo seja um lugar onde o “outro” deixe de existir e onde se fale de gente diferente. E espero, logicamente, que os grandes problemas que nos atormentam hoje, como a fome e o frio, estejam resolvidos. Acho que a sociedade do futuro vai beneficiar muito do desenvolvimento científico e tecnológico, e espero que a tecnologia nos ajude a resolver os grandes problemas que agora temos, por exemplo, com o desafio das alterações climáticas.


E em 2100 vamos pensar em 2200…


Sim, isso é interessante, e obrigada por terem falado disso! É importante que em 2100 não deixemos de pensar no que vem a seguir porque se pararmos ali quer dizer que chegámos a um marco. E o que é encantador no modo de pensar utópico é esta ideia do espaço criado para nos desenvolvermos e para conseguirmos encontrar soluções de pacificação e de felicidade para a nossa sociedade.



Entre o ensino, os estudos da utopia e o cargo reitoral, Fátima Vieira é dona de uma carreira, no mínimo, única | Inês Moura Pinto

Leia a entrevista na íntegra na versão impressa do Prisma

コメント


bottom of page