Se era o músico que era barbeiro ou o barbeiro que era músico não se tem a certeza, mas durante toda a vida foi artista. Nasceu António Ribeiro no Minho e morreu Variações em Lisboa, às portas da fama que o viria a eternizar. Faria hoje 75 anos.
Numa altura em que se votam e anunciam as palavras do ano, há uma que certamente saiu das bocas dos portugueses como já há muito não saía: "Variações". Houve biografia reeditada, houve peça de teatro e houve um filme, que estreou em Agosto e rapidamente se tornou o mais visto do ano em Portugal.
O nome de António Ribeiro, Variações para a música e para todos, não fica indiferente a quem o ouve. Porque quem o ouve reconhece um nível de excentricidade mais elevado que o habitual cantor popular. Então quem o vê tem essa confirmação hiperbolizada: as roupas, cores, ornatos e conjugações faziam com que cada saída de António à rua fosse uma perfomance a céu aberto.
Toda a persona do barbeiro que lançou dois álbuns criou e cria apreciações opostas, mas certamente fica eternizada na memória de todos como única. Quem ouve agora o nome Variações a cruzar tantos assuntos não diria que ele já desapareceu há 35 anos.
Mas foi no dia do seu santo homónimo, a 13 de junho de 1984, que António morreu no hospital, de broncopneumonia. Das últimas coisas que viu do mundo exterior foi a capa do seu segundo e último álbum, Dar & Receber, gravado em fevereiro desse ano. Como promover um disco quando o seu criador desaparece? Como refere Cristina Margato numa reportagem do Expresso acerca do cantor, "a morte de António Variações e as especulações à volta da sua doença tiveram um efeito devastador. Não se venderam mais discos".
Variações já mostrava marcas de uma doença que teimava em persistir. O seu tempo passado nas cosmopolitas Amsterdão e Nova Iorque alimentou a especulação geral de que o artista tinha contraído VIH/SIDA - o vírus desconhecido que começava a eclodir e a espalhar o medo por todo o mundo. Não se espanta a quebra de mentalidades que António proporcionou num Portugal ainda muito antiquado.
No filme de João Maia, Variações, excepcionalmente interpretado por Sérgio Praia, afirma: "é Lisboa que se vai adaptar a mim".
Ao funeral de António foram família, amigos da música e amigos da barbearia. Não se conheciam entre si. As pessoas que o conheciam conheciam uma camada da sua pessoa: o António que cantava para os campos de Fiscal, ou o Variações que entoava os instrumentais de cabeça, ou o António que fazia cortes a 10 escudos. O artista era do tipo de se dar com todos mas não se dar a ninguém.
A própria banda que acompanhava a sua voz - nem sempre afinada mas certeira - não o conhecia muito bem, pois variava, dependendo das disponibilidades; daí que, quando gravou o maxi-single "Povo que Lavas No Rio/Estou Além", em 1982, o cartão de visita que entregou na Valentim de Carvalho dizia "António & Variações". Foi David Ferreira, da editora, que lhe sugeriu cortar o "&".
Depois da versão de Amália, a sua eterna musa e para quem abriu um concerto na Aula Magna, Variações lançou o seu álbum de estreia, Anjo da Guarda. Quatro anos depois de assinar contrato na Valentim de Carvalho, muitos depois de gravar cassetes na casa de banho, António Variações mostra-se ao mundo em forma de música.
Na mesma reportagem do Expresso, diz-se que António "passou mais tempo a afirmar-se como cantor do que a gozar a fama". É uma verdade trágica, como foram muitos episódios da vida de António Ribeiro, desde sair da terra natal aos 12 anos para trabalhar em Lisboa aos sussurros preconceituosos de um Portugal demasiado retrógrado para si. Dos últimos anos de vida, passados em estado febril, sem esquecer a a ceifada da morte, que lhe levou o gozo da fama.
Mas, apesar da hesitação, também os portugueses passaram mais tempo a apreciar o cantor que a negar-lhe a fama. Músicos incluídos: em 2004 surgiram os Humanos, que ressuscitaram as letras de Variações em versões que ainda vivem nas cabeças de todos.
Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo, duas partes dos Clã e fundadores dos Humanos, recordaram no passado fim-de-semana o artista minhoto, numa das sessões do programa que a cidade de Braga dedica, desde setembro e até ao próximo fim-de-semana, à vida e obra de Variações.
Depois de recordarem o tema "Mudar de Vida", Hélder Gonçalves, de guitarra no colo, explica que qualquer um pode tocar aqueles três, quatro acordes. "O Variações é um artista porque, fazendo o que qualquer pessoa conseguia fazer, tem um toque único. Todos os músicos invejam isso".
A música de Variações é crua, verdadeira, única e intemporal. Talvez isso justifique a sua referência e memória nos dias de hoje, por músicos que nem lhe foram contemporâneos, mas cujos ecos ainda lhes ressoaram nas almas artísticas.
O mesmo David Ferreira que assistiu às primeiras gravações do António Cabeleireiro, prestes a tornar-se Variações, há quase quatro décadas, reflete: "estas canções continuam novas! Quer mais?"
António Variações faleceu há 35 anos e tornou-se um anjo da guarda para quem tem a audácia de entrar no seu mundo musical - cheio dela, por sinal. Já não o vemos, mas ouvimo-lo, e sentimos sempre a sua companhia.
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